Geralmente os “amigos imaginários” aparecem a partir do terceiro ano de vida, quando a criança já consegue diferenciar o “eu” do “outro”
Nos tempos que correm todos nós (ou quase todos) falamos com “amigos virtuais” – as redes sociais tornaram-se lugares comuns onde a amizade se multiplica em quantidade e, por vezes, diminui, em qualidade. Fazemo-lo com naturalidade e sem que tal facto suscite a ideia de estarmos perante alguma patologia do foro psíquico a sublimar ou a contornar alguma questão menos clara. No fundo, poderíamos dizer que estamos a falar com “amigos imaginários” já que, sendo reais (é certo), deles criamos teorias implícitas da personalidade que, em muitos casos, não correspondem à realidade. Contudo, quando uma criança “cria” um “amigo imaginário” – brinca, fala e até coabita com ele como se fosse real -, os pais e educadores quase sempre ficam preocupados, sem saber como lidar com a situação e julgando estar perante um problema. Mas será assim?
Diferenciar o “eu” do “outro”
Geralmente os “amigos imaginários” aparecem a partir do terceiro ano de vida, quando a criança já consegue diferenciar o “eu” do “outro” e, na verdade, esta situação não tem necessariamente de estar associada a alguma patologia ou disfunção. Todavia, pode dizer-se que as crianças (e os adolescentes, nalgumas ocasiões) têm tendência a compensar uma realidade menos favorável com que tenham de se deparar com a ajuda de um “amigo imaginário” e, assim, a lidar com sentimentos de abandono, solidão, perda de alguém ou até mesmo rejeição. Torna-se-lhes possível, desse modo, não só uma elaboração de questões psíquicas mais facilitadora, mas também ter uma companhia sempre presente com quem podem manter um relacionamento afectivo e de apoio, independentemente das suas circunstâncias externas.
A maior parte das crianças que criam estes “amigos imaginários” têm consciência de que eles não são reais e que só existem na sua imaginação. Ou seja, essas criações psíquicas podem ser claramente diferenciadas das fantasias patológicas que ocorrem, por exemplo, nos quadros psicóticos. Nas situações ditas “normais”, a criança nunca se sente dominada pelo amigo que criou – antes pelo contrário, ela pode alterar, manipular a sua invenção como (e quando) quiser e determinar a duração da sua existência. Os amigos invisíveis são frequentemente crianças da mesma idade dos seus criadores, podendo também ser animais, mágicos ou super-heróis. Alguns cabem no bolso e podem ser levados para todo o lado (como o canguru Pantouffle, invisível, no filme “Chocolate”, de Hallström).
Uma das primeiras descrições deste quadro é um estudo da pedagoga Clara Vostrovsky, publicado no século XIX, em 1895. Desde então, novos estudos têm mostrado que entre 20% e 30% das crianças têm, pelo menos temporariamente, um ou mais amigos invisíveis.
O desenvolvimento da inteligência infantil
Piaget, nos seus estudos sobre o desenvolvimento da inteligência infantil, também se deparou com a existência de “amigos imaginários” nas brincadeiras das crianças, tendo-os considerado como uma forma do jogo simbólico. Segundo ele, em situações lúdicas as crianças podem desempenhar papéis e criar personagens (os “amigos imaginários”), o que até as ajudará no processo de aprendizagem, estimulando-as a respeitar regras e a animando-as quando estão tristes até que, um dia, desaparecem.
Na verdade, essas figuras desaparecem assim que a criança encontra amigos reais ou se adapta à nova realidade/aprendizagem que tenha de enfrentar (não será o caso, também, de muitos de nós, adultos, na “entrega” à virtualidade das amizades?)
Nos casos em que a existência dos “amigos imaginários” se relaciona com patologia, a criança evidenciará (e manterá – se não houver intervenção adequada) transtornos associados à fragmentação da estrutura básica dos seus processos de pensamento, mostrando dificuldade em distinguir entre experiências internas e externas. Nestas circunstâncias, as crianças/adolescentes podem revelar notória falha de interesse nas relações sociais, tendência a isola-se e dificuldade em lidar/manifestar as suas emoções. Perante este tipo de quadro, os pais e educadores deverão, então, procura ajuda especializada.
Porém, como já referido, na ausência de patologias, quando o “amigo imaginário” cumpriu sua função, então, aparentemente ele não só é deixado de lado, mas também esquecido – sinal de que a criança conseguiu dar mais um passo no seu processo de desenvolvimento.
Os “amigos imaginários”, podem, pois, ser entendidos como um elemento inequívoco do desenvolvimento humano.
Olga Fonseca, Psicóloga e Diretora da área Social da Fundação CEBI