No dia 20 de novembro o mundo celebra a Convenção sobre os Direitos da Criança, um tratado histórico que marcou uma nova era na proteção das crianças e na promoção dos seus direitos.
Em 1959, a Assembleia Geral das Nações Unidas, reconhecendo que «a criança, por motivo da sua falta de maturidade física e intelectual, tem necessidade de uma proteção e cuidados especiais, nomeadamente de proteção jurídica adequada, tanto antes como depois do nascimento», adotou por unanimidade a Declaração dos Direitos da Criança, sendo esta já resultante da revisão da Declaração de Genebra, em 1924, pela Sociedade das Nações.
Em 1979, comemorando os 20 anos da Declaração dos Direitos da Criança, a Assembleia Geral das ONU proclamou o Ano Internacional da Criança. Este evento teve o mérito de estabelecer a viragem para uma nova forma de encarar os direitos da criança, perspetivados em função da própria criança, e que se consagrou, em 1989, na Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), Convenção que Portugal viria a ratificar logo no ano seguinte, em 1990.
Os Quatro Princípios Fundamentais da CDC
A CDC baseia-se em quatro princípios fundamentais: o da não discriminação, o do interesse superior da criança, o do direito à vida, o da sobrevivência e desenvolvimento e o do respeito pelas opiniões da criança.
Após a ratificação da Convenção, Portugal foi ajustando a sua legislação para garantir a proteção efetiva dos direitos das crianças podendo ser referidos alguns marcos, como os relacionados com:
• O Código Civil e a Reforma de 1999, que introduzem o ”princípio do interesse superior da criança” como critério orientador nas decisões judiciais que envolvem menores de idade e estabelecem novas regras para a “regulação do poder paternal”, reforçando os direitos da criança em casos de separação dos pais;
• A Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei n.º 147/99), que cria um quadro normativo onde define medidas de promoção dos direitos e proteção para crianças em situação de risco, reorganiza as Comissões de Proteção de Menores que passam a adotar a designação de Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), garantindo a sua intervenção e estabelecendo o dever de todos os cidadãos em denunciar situações que coloquem crianças em perigo;
• A Adoção e Direitos de Proteção, com implementação de medidas para acelerar processos de ”adoção” e garantir que as crianças possam crescer em ambientes familiares seguros e estáveis;
• O reforço da Legislação para a “proteção de crianças vítimas de violência doméstica” e “exploração sexual”.
O Papel da Fundação CEBI na Defesa dos Direitos da Criança
Desde sempre sensível à Proteção das Crianças e à Promoção dos seus Direitos, a Fundação CEBI esteve presente nos principais marcos que assinalam a proteção das crianças e a promoção dos seus direitos no concelho de Vila Franca de Xira.
Em 1992 acolheu a criação da Comissão de Proteção de Menores da Comarca de Vila Franca de Xira (instalada pela Portaria n.º 417/92, de 21 de maio, por decreto do então Ministro da Justiça, Dr. Álvaro Laborinho Lúcio) – ficando a mesma sediada, à data, nas suas instalações. Mais tarde, entre 2004 e 2011, vem a assumir a presidência da CPCJ, promovendo uma dinâmica de participação ativa de crianças e jovens nos projetos implementados, bem como um forte impulso na prevenção primária, estimulando a participação dos comissários da modalidade alargada da mesma.
Em 1996, integra a Comissão Nacional dos Direitos da Criança e, um ano antes (em 1995), consciente da necessidade de dar resposta às muitas crianças que já existiam em situação de perigo no concelho de Vila Franca de Xira, abre o primeiro Centro de Acolhimento Temporário, para crianças, do concelho.
Também já com representação internacional nessa altura, a Fundação CEBI, enquanto membro do International Forum for Child Welfare (IFCW), promoveu na comunidade debates e facilitou a atualização de informação relativa à Convenção sobre os Direitos da Criança. Membro fundador da EUROCHILD, que sucedeu ao European Forum for Child Welfare (EFCW), fomentou a participação das crianças em debates no Parlamento Europeu, na apresentação de propostas e recomendações de alteração de legislação e influencia nos planos de ação do estado português.
De facto, desde cedo, a Fundação CEBI valorizou a Participação da Criança: por exemplo, levando-as a participar, pela Eurochild, na discussão na Comissão Europeia que viria a culminar nas recomendações da Garantia Europeia para a Infância, apoiando-as quando foram nomeadas Comissárias na Luta contra a Pobreza Infantil em Portugal, ouvindo-as no âmbito do Projeto da Unicef “Tenho Voto na Matéria”, incentivado a sua participação na Assembleia Municipal Jovem, no Conselho Nacional Consultivo de Jovens Acolhidos, etc.
A Transformação do Sistema de Proteção à Infância em Portugal
Podemos dizer que, nos seus 56 anos de idade, a Fundação CEBI acompanhou a evolução do sistema de proteção à criança em Portugal. A análise dessa evolução leva-nos a revisitar as significativas mudanças sociais, políticas e culturais que fomos atravessando. E mostra-nos como esse progresso abrange o desenvolvimento de políticas públicas, de reformas legais, do crescente conhecimento sobre os direitos da criança - quer ao nível nacional, quer internacional - , e, sobretudo, da consciência de que as crianças nunca são menores.
O país passou de um modelo assistencialista para um sistema que prioriza os direitos e o bem-estar das crianças, reconhecendo-as como sujeitos de direito. Hannah Arendt considerou que poderiam existir efeitos perversos associados à autonomia dos direitos da criança, entre eles o da «constituição de um mundo autónomo da infância que supostamente tem os seus gostos, as suas necessidades e as suas lógicas próprias» e que, a linha traçada entre crianças e adultos poderia tornar-se numa muralha a separá-los.
Contudo, rapidamente se percebeu que, na letra da CDC, tanto o conhecimento, como o reconhecimento de uma cultura da criança anulam o risco de se registarem tais efeitos perversos, e, sim, garantem o entendimento de que uma criança não é um adulto (à luz do pré-Iluminismo) e tem de ser respeitada no âmbito das suas características e necessidades.
Hoje comemoram-se os 35 anos da CDC e, apesar da grande evolução do sistema de proteção da criança em Portugal, ainda tantas questões se levantam. Questões que deixo à reflexão:
• Estando 95% das crianças acolhidas em Portugal (no âmbito do Sistema de Promoção e Proteção) em instituições (quase o triplo da média mundial), como é que se perspetiva a implementação da Portaria que regulamenta o Regime de Execução do Acolhimento Residencial (Portaria 450/2023,22 dezembro), nomeadamente prevendo a progressiva desinstitucionalização das crianças (isto também atendendo ao Plano de Ação da Garantia para a Infância)?
• Como alterar o estado da arte na área do Acolhimento Familiar, quando se tem como denominador comum para o mesmo uma cultura emocional pouco responsável e pouco altruísta que não permite o exercício ao direito de todas as crianças a terem uma família?
• Como é que Portugal tem trabalhado para alinhar as suas políticas com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), especialmente o ODS 16 - Acabar com o Abuso, exploração, tráfico e todas as formas de violência e tortura contra crianças?
A Pobreza na Infância: Uma Realidade Persistente
Se muito caminho se tem trilhado em prol da defesa dos direitos das crianças e da sua proteção, o que é certo é que muito há ainda por fazer. Entre os maiores atentados aos direitos das crianças, está a situação de pobreza em que muitas delas se encontram.
Considerando o aumento da taxa de risco de pobreza na população abaixo dos 18 anos e que, segundo dados recentes, cerca de 2 mil crianças estão sinalizadas para receber o apoio ‘Garantia para a Infância’, poderá pensar-se que o Sistema de Proteção à Criança em Portugal ainda é muito imaturo. Ou melhor, não chega colocar a defesa dos direitos das crianças nas agendas políticas, é absolutamente necessário que existam planos de ação realizáveis e responsabilidade pela sua execução.
Hoje, Portugal possui um sistema de proteção à criança com desafios persistentes, como a necessidade de melhorar a implementação da legislação, a coordenação entre serviços, o combate à pobreza na infância e o reforço de medidas de prevenção.
35 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança
Durante as celebrações deste dia especial, escolas, comunidades e organizações em todo o mundo realizam atividades de consciencialização, debates e campanhas para promover uma maior compreensão dos direitos das crianças.
A data é um lembrete poderoso de que, apesar dos avanços, milhões de crianças ainda enfrentam desafios como a pobreza, o trabalho infantil, a violência, a necessidade de uma família e a falta de acesso à educação.
Por isso, ao celebrar a Convenção sobre os Direitos da Criança, reforcemos a necessidade de continuar a luta pela justiça social, igualdade e dignidade para todas as crianças, promovendo um futuro onde cada criança tenha a oportunidade de crescer plenamente num ambiente seguro e inclusivo.
Este é um compromisso que deve ser renovado não apenas no dia 20 de novembro, mas todos os dias do ano.
Porque as crianças importam hoje, não amanhã ou depois, mas hoje.
TEXTO | Olga Fonseca, Psicóloga e Diretora da área Social da Fundação CEBI